O general Augusto Heleno está prestando depoimento hoje para a Polícia Federal (PF) sobre o plano de golpe de Estado para evitar a vitória democrática de Lula. A fala golpista do general foi revelada na reunião ministerial do dia 5 de julho de 2022, onde ele disse ser “preciso agir contra instituições e contra indivíduos” e que se “tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. As falas de Heleno não deixam dúvidas: o general remete a uma estratégia de guerra civil. Sua prisão é urgência imediata.
A opção pela violência política não é novidade na estratégia de Heleno. Ela foi aplicada no Haiti e ele foi o principal responsável pela carnificina ao longo da intervenção militar no país e o fracasso estrondoso da ONU. Heleno supervisionou a fase mais sanguinária da repressão, suprimindo partidos de esquerda e movimentos sociais na ilha caribenha com brutalidade.
Golpe e intervenção militar
O Haiti foi desestabilizado pelos estados ocidentais em 2004, depois que os Estados Unidos, Canadá e França apoiaram a derrubada do governo social-democrata de Jean Bertrand Aristide. Depois de perderem o interior para uma insurgência na República Dominicana, o país vizinho, Aristide foi forçado em 29 de fevereiro daquele ano a entrar em uma avião não-identificado dos fuzileiros navais dos Estados Unidos. Eles assumiram o controle do aeroporto internacional de Port au Prince e mandaram Aristide, contra sua vontade, à República Central Africana. Eventualmente lhe foi cedido exílio na África do Sul.
As tropas americanas foram logo substituídas por uma missão militar da ONU, a MINUSTAH, encabeçada por uma força militar brasileira, chefiada por Heleno. Além da repressão armada à esquerda, a ocupação militar da ONU foi responsável por espalhar uma epidemia de cólera que matou mais de 30 mil pessoas. Junto a isso, mais de duas mil acusações de estupro foram apresentadas contra os soldados brasileiros.
Assim que suas tropas assumiram controle militar das operações na ilha, em meados de 2005, os haitianos reagiram à presença do general Heleno e seus soldados com hostilidade imediata. Pneus em chamas e coquetéis molotov marcaram a chegada dos blindados do batalhão brasileiro na capital, Port au Prince. Os apoiadores de Jean Bertrand Aristide, presidente democraticamente eleito do país, sequestrado e deposto por um golpe orquestrado pelos Estados Unidos, seguiam no controle dos bairros de Cite Soleil e Belair, na periferia que cercava a capital ocupada, Port au Prince.
Maior favela do país, Cite Solei também era a base eleitoral de Aristide e da política do partido Fanmi Lavalas, então a principal organização de esquerda no Haiti.
Para eliminar a oposição, no dia 5 de julho, Heleno ordenou a execução do dirigente comunitário pró-Aristide, Emmanuel “Dread” Wilme. Dezenas de mulheres e crianças também foram executadas na operação.
Vídeo do massacre, coletado por observadores do Conselho dos Trabalhadores de São Francisco, documentado na rádio e podcast nova-iorquino Democracy Now!, mostra as imagens horrorosas dos haitianos mortos sob comando do general Heleno. Segundo Seth Donnelly, que foi a Cite Solei no dia seguinte e testemunhou o funeral de Dread Wilme, a comunidade claramente estava traumatizada.
“Vimos casas, e quando dizemos casas, estamos basicamente falando de barracos de madeira e zinco, que em muitos casos, estavam repletos de buracos de balas de metralhadoras.” Disse Donnelly. “Os buracos em muitas dessas casas eram grandes demais para serem de balas. Foram com certeza de artilharia que penetraram as casas. Vimos uma igreja e uma escola inteiramente metralhadas.”
O massacre acompanhou o discurso linha dura promovido pelas tropas de ocupação da ONU. Ao ser questionado sobre a operação por Donnelly, o general Heleno, “inicialmente nos questionou, perguntou sobre nossa delegação, porque estávamos preocupados com os direitos de ‘bandidos’, termo que usou, e não das ‘forças legais’.” Heleno também foi descrito pelos integrantes do movimento trabalhista da Califórnia como “ignorando por inteiro o testemunho vindo da comunidade como expressão de hostilidade da comunidade e ‘ataques de gangues’ às forças da ONU”.
Sequência de mortes
Segundo estimativas, ao menos 27 haitianos foram mortos na operação, a maioria eram mulheres jovens. De acordo com as investigações, mais de 22 mil balas foram disparadas no confronto na operação, batizada de “Punho de Ferro”. Sob pressão do movimento internacional de solidariedade do Haiti, Heleno, que chefiava a operação da MINUSTAH, foi demitido no mesmo mês.
Porém, após uma sequência bizarra de acontecimentos, seu sucessor, o general Urano Bacelar, foi encontrado morto três meses depois de substituir Augusto Heleno em Port Au Prince.
Enquanto o acontecimento foi descrito como um “suicídio”, nunca tendo sido oficialmente investigado, vazamentos do Wikileakes revelam ceticismo em relação a essa hipótese pela diplomacia de Washigton na ilha, que vinculava a morte de Bacelar aos diversos conflitos que atingiam as tropas das Nações Unidas.
O assassinato de Wilme por Heleno foi acompanhado por uma ampla campanha de difamação, promovida pelos editores da revista Piauí, para negar a natureza política da execução. O dirigente partidário e organizador popular da maior favela do Haiti, em uma matéria jornalística voltada a encobrir os crimes do Exército brasileiro, passou a ser caracterizado como “líder de gangue”. No Haiti, porém, as perspectivas são outras. No dia 17 de outubro de 2005, a principal avenida de Cite Soleil, Rt. 9, foi ampliada e renovada, recebendo também um novo nome: “Dred Wilmè boulevard”. Na justa homenagem, as imagens de Wilmè foram acompanhadas pelas de Jean Jacques Desalin, considerado fundador da República Haitiana.
Mais uma vez esse ano, novas tropas da ONU serão enviadas ao Haiti, agora comandadas por exércitos de países africanos. Ao invés de repetir erros passados, faria mais sentido a comunidade internacional e os órgãos multilaterais construírem as vias legais para responsabilizar os possíveis crimes cometidos pela MINUSTAH contra a democracia haitiana, a mais antiga do continente.
Benjamin Fogel colaborou para essa matéria.
Sobre os autores
é advogado. Cobriu como jornalista a Primavera Árabe para os jornais Estadão, Folha de S.Paulo e Opinião Socialista. Formado em Relação Internacionais e Direito pela PUC-SP, é mestre em ciência política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).